Antônio Carlos Belchior nasceu no município de Sobral, Ceará, em 26 de outubro de 1946. Foi músico, professor, produtor e compositor. Talvez você não conheça a obra de Belchior cantada em sua voz mas, possivelmente, já cruzou com alguma de suas canções interpretadas por grandes vozes da música brasileira, como Elis Regina ao cantar “Velha Roupa Colorida” e “Como nossos Pais”. O fato é, Belchior foi um exímio letrista.

O álbum que catapultou a carreira musical de Belchior foi “Alucinação”, de 1976. Esse disco reúne canções emblemáticas, incluindo “Velha Roupa Colorida” e “Como nossos Pais” e, além de tratar de questões íntimas de Belchior, traduzem a juventude do período, as incertezas, as questões sociais latentes e a repressão vivida pela Ditadura Civil-Militar que acometia o País desde 1964. Mas, o que Belchior tem a ver com Xenofobia?

Capa do álbum “Alucinação” (1976)
Fonte: Wikipedia

Para responder a esta pergunta precisamos voltar um pouquinho nos elementos que construíram a atmosfera da década de 1970. Além de uma ditadura militar, o país vivia um processo lento de industrialização que se concentrava na região sudeste do país, especialmente em São Paulo. Esse processo não aconteceu ao acaso. Desde a vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil em 1807 e transferência da capital do Império para o Rio de Janeiro em 1808, a região Norte e Nordeste (no período apenas denominado de região Norte) deixa de ser o centro das decisões políticas e econômicas do Império e esse processo se estende para os séculos seguintes. Além do Rio de Janeiro e outros estados do Sudeste e Sul do país, São Paulo desponta como o núcleo do progresso e do desenvolvimento. Aos poucos, a região Norte e Nordeste passa a ser associada ao arcaísmo, a pobreza, a miséria e, principalmente, de seca.

A problemática da seca já era conhecida desde o século XIX (referência à Grande Seca de 1877-1879), mas só passou a ser tratada institucionalmente a partir de 1920, fazendo-se necessário delimitar o território mais atingido pelas secas. Daí desponta a região denominada Nordeste. A questão regional vai acompanhar esse processo e a seca se tornará um problema recorrente ao longo do século XX, construindo um imaginário sobre o Norte e o Nordeste associado à seca, à fome e à miséria decorrentes dela. Ao passo que o Sul/Sudeste, especificamente São Paulo, que passa a se apresentar como um contraponto à região Norte/Nordeste em termos culturais, políticos e econômicos, que, de acordo com os discursos da época, concentraria todo o desenvolvimento e o progresso da industrialização. Por conta disso, assiste-se ao longo do século XX, diversas ondas migratórias de Nordestinos para São Paulo e outros Estados do Sul/Sudeste do País.

Na década de 1970 não foi diferente. Belchior, como muitos conterrâneos cearenses (e vizinhos pernambucanos, baianos, sergipanos), migrou para o Sudeste. Inicialmente, para o Rio de Janeiro em 1971 e no ano seguinte para São Paulo, com o objetivo de trilhar a carreira como artista. No cenário musical da época, o sotaque nordestino não era tão comum em grandes gêneros musicais como a MPB, o rock e o folk rock. A razão disso, em parte, um reflexo da Xenofobia, que buscava consagrar gêneros musicais e artistas do Sul e Sudeste como nomes importantes do cenário nacional e as expressões artísticas das regiões Norte e Nordeste como locais ou regionais. Isso te lembra alguma coisa?

Nas letras cantadas por Belchior era possível perceber o drama e as nuances desse processo migratório. Como no caso da música “Fotografia 3×4”, presente no álbum “Alucinação”, em que Belchior canta: “A minha história é, talvez /É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte, que no sul viveu na rua/ E que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo / E que ficou desapontado, como é comum no seu tempo / E que ficou apaixonado e violento como, como você”.

 Demonstrando, assim, que nem sempre esse processo migratório encontrava o fim esperado de progresso. Além disso, a atmosfera daquele tempo era de incertezas e, aliado às incertezas da migração, todo esse processo poderia transformar intimamente qualquer pessoa.

Em seu Álbum “Coração Selvagem” de 1977, a música “Galos, Noites e Quintais” remete a uma memória de Belchior sobre sua vida antes de decidir “ganhar o mundo de meu Deus” e fazer ele mesmo seu próprio caminho. Essa nostalgia também se refere a processos migratórios, especialmente quando ele associa suas boas experiências à sua vida simples antes de migrar, “adoçando seu pranto e seu sono no bagaço de cana do Engenho”.

Capa do álbum “Coração Selvagem” (1977)
Fonte: Discogs

No álbum de 1979, “Era uma vez um homem e seu tempo”, Belchior traz mais uma vez a questão migratória em suas letras, ao cantar na música “Conheço o meu lugar”: “Nordeste é uma ficção/Nordeste nunca houve/Não eu não sou do lugar/Dos esquecidos/Não sou da nação/Dos condenados/Não sou do sertão/Dos ofendidos/Você sabe bem/Conheço o meu lugar”, uma nítida crítica aos estereótipos sobre o Nordeste que vinham sendo construídos desde o início do século XX e muitas vezes utilizados para depreciar Nordestinos.

Capa do álbum “Era uma vez um homem e seu tempo” (1979)
Fonte: Spotify

Pensar a relação entre Belchior e Xenofobia é refletir sobre sua trajetória de vida e como ele reproduziu e interpretou os dilemas desse processo migratório em suas canções.  A Xenofobia, como define o Historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior (2016), nada mais é do que o medo e a aversão ao estrangeiro, podendo se manifestar de diversas maneiras dependendo do contexto e das questões histórico-culturais dessa manifestação xenófobas. E aí você poderia se perguntar: “mas professora, o Nordeste faz parte do Brasil, não seriam todos brasileiros?”. Bom, para entender isso, nós precisaremos de  outro post para explicar sobre regionalismo. Por hora, vamos nos concentrar em entender que a vastidão do nosso território e a diversidade étnica e cultural dele faz com que tenhamos abismos culturais de um Estado ou região para a outra. Então sim, Nordestinos são estrangeiros para os Sulistas, e vice-versa. Portanto,  podemos classificar de atos xenófobos as manifestações de preconceito, exclusão e até mesmo violência envolvendo, especialmente, nordestinos que migraram e se fixaram em estados ao Sul do País.

Escute a nossa playlist! A professora Laiza Campos reuniu as músicas de Belchior que nos fazem refletir sobre a xenofobia e a vida daqueles que, como Belchior, migraram no Norte/Nordeste para o Sul/Sudeste.

Belchior e a xenofobia – Playlist por Professora Laiza

Professora Laiza Campos

Laiza é professora de História, Sociologia, Geografia e Atualidades na Nautae. É mestra em História Pública (UNESPAR), com bacharel e licenciatura em História pela mesma instituição. Também possui experiência como pesquisadora e produtora audiovisual.

Confira o documentário Benedita & Manoel e muitos outros conteúdos no canal Bom de História, criado pela nossa professora em parceria com Brandon Figueiredo.

4 Comentários

  • Jessica
    Posted 4 de fevereiro de 2022 20:05 0Likes

    Muito interessante! Amo Belchior! 💓

    • Nautae
      Posted 4 de fevereiro de 2022 20:10 0Likes

      Nós também! Inesquecível!

  • Ana
    Posted 16 de fevereiro de 2022 13:39 0Likes

    Adorei o texto! 😉

    • Nautae
      Posted 16 de fevereiro de 2022 13:47 0Likes

      Muito obrigada! 🤩

Deixe seu comentário